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sábado, 23 de fevereiro de 2013

Reflexões bíblicas sobre a quaresma e a Páscoa




Propomos aqui um estudo diferenciado, entre os muitos disponíveis nos livros e revistas. Ele tem duas linhas de apresentação. Primeiramente, vamos falar sobre a base histórica da Quaresma e da Páscoa que a Bíblia apresenta. Em segundo lugar, apresentaremos alguns elementos do amplo e variado campo semântico da teologia da Quaresma e da Páscoa. Foram escolhidas, aqui, algumas palavras que são estreitamente relacionadas à celebração da Páscoa desde o Antigo Testamento até o Novo Testamento. O objetivo deste estudo é equipar o seu estudo bíblico para esses dois períodos litúrgicos, bem como enriquecer a sua prática pastoral.

Contexto histórico


Embora seja certo que a ciência e a fé devam andar de mãos dadas, é preciso afirmar que estas duas grandezas possuem diferentes campos de atuação. A ciência trabalha com a racionalidade e a fé gira em torno da revelação de Deus na história. Assim, o/a estudante da Bíblia deve ler a Escritura Sagrada com os olhos da razão e da fé, sem receio de ser impedido/a de compreendê-la.
Israel se constituiu, como povo, em meio ao desmantelamento do período do Bronze e a chegada do Ferro, no Antigo Oriente Médio (século XIII a.C.). O povo, mais tarde chamado Israel, teve sua origem entre os grupos de pastores semi-nômades. As figuras que fazem parte da pré-história dos israelitas - Abraão, Isaac. Jacó, Moisés, entre muitos outros - foram pastores que viveram na periferia, isto é, nas estepes da terra de Canaã. Aqui, faz-se necessário uma explicação: Israel não é nômade, pois não faz uso de camelos, mas ele é semi-nômade, pois vive da criação de carneiros e ovelhas.
Israel teve sua origem na Mesopotâmia, via Harã e Aram. A tradição dos patriarcas é transmigrante, isto é, viajavam muito, mas permaneciam por algum tempo nas regiões visitadas. É difícil saber a razão dessa cultura da transmigração. Seria a busca de uma solução para a vida dura e difícil? Seria a esperança de dias melhores? A teologia bíblica sugere que isso faz parte dos mistérios da fé.
Após a chegada em Canaã, a família de Abraão foi viver na periferia das terras férteis daquela região, já naquela época extremamente cobiçada pelos povos vizinhos. A clã de Abraão não foi viver com os proprietários das terras agrícolas, mas nas regiões montanhosas que circundavam a parte fértil, criando carneiros e ovelhas. Os patriarcas viveram na instabilidade própria das estepes. De um lado, eles mostravam-se frágeis, mas na verdade eles tinham uma economia bastante estável. Não pagavam tributos aos proprietários da terra, já que as estepes não tinham valor econômico para a agricultura. Além disso, os patriarcas tinham liberdade para migrar continuamente. Eles sentiam-se livres para viver. Todavia, a liberdade e o direito de ir e vir não era total: primeiro, eles eram impedidos de viverem nas regiões agrícolas, pertencentes aos cananeus; segundo, eles precisavam de água fornecida pelos poços. Como eles viviam em áreas semi-desérticas, o poço de água era uma raridade. O poço de água constituía-se algo de grande valor para a sobrevivência dos semi-nômades e os seus rebanhos.
Dentre os costumes dos pastores semi-nômades, a Bíblia preservou uma celebração: a Páscoa. Trata-se de uma cerimônia celebrada todos os anos no mesmo período. Ela é conhecida como a cerimônia da passagem da estação da Primavera para o Verão. A razão dessa celebração está nas leis da natureza. É possível viver e cuidar do rebanho, na região das estepes, durante o Outono, Inverno e Primavera. Contudo, não é possível suportar o calor do sol de Verão que queima a pouca pastagem do semi-deserto. Daí, os pastores que vivem nessas regiões são obrigados a migrarem-se para outros lugares em busca de água e alimento. O momento crítico é o da saída. Quando os sinais da chegada do Verão se faziam presentes, numa noite, os pastores celebravam a saída, em busca de outras paragens provisórias para o sustento da vida dos familiares e os seus rebanhos. É a saída para a vida. A cerimônia principal incluía o sacrifício de uma ovelha para que ela servisse de alimento para toda a família.
Quando os pastores semi-nômades, do êxodo, alcançaram a terra de Canaã e agregaram-se aos agricultores cananeus, a celebração da Páscoa ampliou com alguns elementos agrícolas da Festa dos Pães Àzimos ou Asmos.

Por que a ausência de fermento no pão?
Primeiramente, o povo bíblico procurou explicar o motivo através da história, chamando-o "pão da pressa". Entre as mais primitivas prescrições da Páscoa está recomendado que essa refeição deve ser feita "às pressas" (Ex 12.11-12), porque foi no inesperado da calada da noite que os escravos hebreus saíram do Egito.
Em segundo lugar, a ausência de fermento no pão tem a ver com a renovação da vida. Não se pode misturar o antigo com o novo. Precisa-se criar um novo fermento que dará o sentido para a nova vida, agora, em liberdade, na terra de Javé.
A celebração da Páscoa, ao longo dos séculos, antes de Cristo, sofreu algumas alterações de caráter secundário (comparar Ex 12.1-14; 21-28; 43-51; Dt 16.1-8). Contudo, a Páscoa nunca modificou o seu sentido de memória dos grandes atos de Deus em favor do Povo, a fim de que esse gesto possa renovar a esperança daqueles/as que estão oprimidos/as. É com essa finalidade que Jesus reuniu os seus apóstolos em torno de uma mesa para uma derradeira refeição. A frase que ficou na memória deles foi: "Fazei isso em memória de mim" (Lc 22.14-20).


Contexto semântico


O campo semântico dos temas "Quaresma e Páscoa" é vasto. Escolhemos algumas palavras para analisar, no âmbito do Antigo e do Novo Testamentos.

A) SALVAR

Salvar é um verbo central na Bíblia. A língua hebraica possui muitos verbos que ajudam a mostrar diversidade e a riqueza de significado que salvar possui no contexto bíblico. O verbo salvar tem muitos sinônimos: yasa' = salvar (Êx 1430), ga´al = redimir (Êx 6.6; Os 13.14), padah = resgatar (Êx 13.13, 15; Os 13.14), ´azar= socorrer (Js 10.6), nasal = livrar, libertar (Sl 59.2), palat = salvar (Sl 37.40). Certamente, este o quadro de palavras sinônimas mostra o grande interesse e importância que o tema salvar desempenha dentro do ensino bíblico. Todavia, o verbo yasa´ e seus derivados - hosya´ = ele salva; yesu' = salvação; mosia´= salvador - constituem-se os termos soteriológicos mais usados Biblia. É que yasa' é o verbo usado quando Javé ou o seu Ungido são referidos. Por essa razão, o seu uso não é comum fora do âmbito religioso e teológico.
O conceito "salvar", no Antigo Testamento, possui uma interessante peculiaridade. "Salvar" não carrega uma reflexão poética ou mitológica, mas tão somente um testemunho histórico da ação de Deus em favor dos homens e mulheres, enfim, do mundo. Assim, o ato salvífico de Javé é mostrado, na Bíblia, de forma bastante concreta. O povo sofrido lamenta e clama pela ajuda de Deus (Ex 3.7-22) que, em atenção a essa súplica, providencia toda sorte de auxílio: envia a resposta (Sl 20.6), liberta (Sl 71.2), abençoa (Sl 28.9), salva (Sl 37.40), faz justiça (Sl 54.1), protege (Sl 86.2) e redime (Sl 106.1) o povo que queixa. Assim, a Bíblia vê Javé como aquele que age e produz salvação no meio do povo (Sl 12.5). Por isso, Ele é designado como aquele que realiza atos salvíficos em toda a terra (Sl 74.12).
Salvador é um dos títulos mais usados no Antigo Testamento para designar Javé. O povo bíblico confessará que Javé o havia salvado (Is 17.10; 43.3; 51. 24.25). O nome do grande líder Josué afirma que "Javé é Salvador". O nome de Jesus tem esse mesmo significado (Lc 1.47)

B) DESERTO

No Antigo Testamento
A palavra deserto possui uma forte concentração de significado teológico em toda a Bíblia. Para entender o seu sentido é preciso partir do seu conceito geográfico. O deserto é, primeiramente, descrito como um lugar terrível (Dt 1.19), de estepes e barrancos, seco e escuro que ninguém atravessa e habita (Jr 2.6) e, também, ermo e solitário (Ez 6.14). Apesar dessas conotações negativas, a história salvífica de Javé teve como palco principal o deserto.
A memória do ato libertador de Javé tem o deserto como seu cenário central. A história bíblica narra que o povo israelita, sob a liderança de Moisés, caminhou por quarenta anos no deserto até chegar à Canaã, a terra que mana leite e mel (Êx 3.8). Os profetas disseram que esse foi o tempo mais fértil e significativo da história do povo bíblico (Os 2.14; 13.5-6), e a celebração da Páscoa inclui, na sua liturgia, a dramatização dos eventos do deserto (Êx 12.1-14; Dt 16.1-8).
Foi no deserto que os/as escravos/as aprenderam a viver comunitariamente e obedecer ao seu Deus. Além disso, foi no deserto que esse grupo reconheceu que não podia viver de modo egoísta e individualista, mas foi nesse austero espaço que os hebreus renderam desfrutar, de modo comunitário, da graça de Deus. Portanto, deserto é lugar de desolação, mas também da companhia de Deus (Êx 13.21); é o lugar sem fertilidade, mas foi o tempo pleno da palavra e da graça de Deus (Jr 22). No deserto, o peregrino olha para o alto e somente vê o sol escaldante; olha para os lados e somente vê areia quente. A sua única esperança é confiar em Deus. Esta, certamente, foi a experiência daquele bando escravos e escravas libertado por Deus, no Egito. Foi a partir dessa experiência que o profeta Oséias falou pedagogicamente ao povo esquecido e, conseqüentemente, desobediente, durante os dias do Reino de Israel - "Eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração" (2.14).

Novo Testamento
Na tradição pascal veterotestamentária, a celebração da Páscoa precedia o deserto. Na tradição sinótica, o deserto precede a Páscoa. O deserto marcou o início do ministério de Jesus, além de aparecer em algumas vezes história do ministério. Após o batismo, Jesus retirou-se ao deserto onde jejuou, orou e foi tentado. No deserto, após vencer a tentação, Ele foi servido pelos anjos. Deste modo, o deserto é lugar de provação e de providência divina. Diferentemente do povo de Deus na história da peregrinação no deserto, Jesus venceu, a provação e manteve-se fiel a Deus. Por isso, ele não experimentaria a morte às portas da terra prometida, como aconteceu com Moisés. Assim, junta-se deserto e ressurreição na história de Cristo, unindo batismo e eucaristia em um mesmo movimento. Batismo e deserto marcam o início do ministério de Jesus, enquanto a eucaristia e a ressurreição marcam o final.
A partir daí, a Igreja Cristã - como, por exemplo, as comunidades do Apocalipse - enxergam a sua provação como o deserto, onde as águas do dragão tentam engolir a comunidade (a provação) e o deserto engole a água (providência).


C) O NÚMER0 40

No Antigo Testamento
O povo tem tentado entender o significado dos números, porém é, provavelmente, impossível chegar a uma explicação plena e completa. Cada povo constrói uma simbologia muito própria. Portanto, não é possível explicar o significado hebraico do número 40, tomando por base o sentido egípcio ou cananeu.
O número 40, entre os israelitas, certamente, possui um significado teológico que tem sua origem na própria história do povo. É necessário lembrar que os ensinos, hinos, liturgias, ou outra expressão de comunicação, contidos na Bíblia, deverão ser vistas à luz da experiência histórica do povo. Assim deve ser visto o significado do número 40.
No Antigo Testamento, o número 40 ocorre muitas vezes relacionado a momentos significativos da história bíblica. Entre tantas ocorrências, quatro são destaques no Antigo Testamento: o período do dilúvio foi de 40 dias (Gn 7.4); os hebreus caminharam 40 anos pelos desertos até atingir Canaã (Js 5,6); a duração do bom reinado de Davi foi de 40 anos (2Sm 5.4); Elias caminhou 40 dias para encontrar com Deus no Sinai (lRs 19.8). Estas quatro ocorrências estão ligadas a eventos fundantes e significativos na história bíblica do Antigo Testamento. Não deveríamos entender o número 40 como um múltiplo de quatro? O número 4, provavelmente, tem a ver com os quatro pontos cardeais dos quais vêm os quatro ventos que abastecem a terra de oxigênio. O relato da Criação afirma que quatro rios irrigam toda a terra (Gn 2.10-12). Não estaríamos diante do símbolo da intervenção divina que renova a vida e a esperança no mundo? Por tudo isso que foi falado, acima, provavelmente, o número 40 sinaliza o início de um novo período de atividade de Deus.

No Novo Testamento
No NT, o simbolismo do número 40 continua. Por exemplo, Jesus recolhe-se no deserto por 40 dias e 40 noites (Mt 4.3; Mc 1.1; Lc 4.2). Uma outra ocorrência significativa, na vida e obra de Jesus, é mencionada por Atos dos Apóstolos: Jesus, após a ressurreição, permaneceu na terra 40 dias (At 1.3). Certamente, o número 40 lembra a difícil, mas significativa caminhada do povo de Israel no deserto.


D) PÁSCOA

No Antigo Testamento
O nome na Bíblia não é um simples rótulo que se coloca em uma pessoa ou acontecimento para torná-lo mais atraente. O nome representa a realidade profunda do ser que o conduz. Assim é a Páscoa. A palavra páscoa vem do hebraico pesah cujo significado é salto, movimento, caminhada, travessia. O nome pesah está estreitamente ligado à história dos acontecimentos que antecederam a saída dos/as escravos/as hebreus e hebréias, do Egito (Êx 12.11, 21, 27, 43, 48; 34.25), em direção à liberdade e à vida plena, em Canaã.
O termo pesah = salto, travessia, é histórico, mas ganha sentido teológico por várias razões: Deus passou ao largo das portas das casas dos/as escravos/as hebreus e hebréias, pintadas com sangue de carneiro sacrificado, e assim, livrando os filhos primogênitos da morte (Êx 12.12-13, 23); Deus fez com que esse grupo de escravos/as atravessassem os desertos para ganhar a liberdade na terra da promessa, Canaã. Por fim, Deus fez os hebreus e hebréias saltarem da escravidão para a liberdade, da angústia para o prazer de viver e da morte para a vida.
Todos esses motivos históricos levaram os descendentes desses/as escravos/as a organizarem uma celebração cúltica onde a ênfase seria lembrar os grandes atos salvíficos de Deus, em favor de seus pais que eram escravos/as no Egito. Assim, a partir da chegada a Canaã, os/as descendentes desses/as escravos/as passaram a celebrar, uma vez por a o, esse grande salto, dos hebreus, para ganhatem a liberdade. Naturalmente que o nome dessa celebração veio a ser pesah, isto é, páscoa. É suposto que, a partir da chegada em Canaã, fim do século XIII a.C., o povo hebreu celebrou a Páscoa, cuja finalidade primordial é ensinar as futuras gerações que Deus liberta e oferece vida plena a todos/as. Assim, quem celebra a Páscoa aprende que Deus não admite escravidão.

No Novo Testamento
A festa da Páscoa, no cristianismo, é um dos elementos que anuncia a origem judaica da fé cristã. É importante nesse caminho perceber que na celebração da Festa da Páscoa judaica o drama fundante da fé cristã se insere de forma decisiva.
Jesus, na condução da refeição pascal, anunciou o memorial que identificaria as reuniões dos futuros seguidores de seu movimento. A partir da páscoa judaica - providência divina e libertação - o cristianismo anuncia a redenção e a ressurreição. Embora pareçam distintos, esses termos têm profundas ligações com o sentido veterotestamentário.
A morte de Jesus, em meio às celebrações pascais, representou a vitória aparente das forças da morte. Os poderes instituídos venceram o Ungido de Deus. Contudo, a ressurreição é a resposta de Deus que anuncia a vitória definitiva da vida. Com isso, a ressurreição de Cristo representa a providência divina que salva o Ungido e o liberta, desta vez, da força da morte.
Deste modo, a Páscoa cristã relê a concepção judaica antiga, ampliando o campo da libertação para a libertação da morte. Com isso, o sentido de ressurreição do indivíduo - novidade no pensamento judaico - junta-se ao conceito de Páscoa definindo os contornos da fé cristã.

E) MEMÓRIA

No Antigo Testamento
No Antigo Testamento, encontramos dois verbos importantes para a compreensão do significado de celebração e culto: lembrar e esquecer. Evidentemente que lembrar é mais importante que esquecer. Na língua hebraica, lembrar é zakar. A ordem de Moisés aos escravos hebreus, no Egito, explica bem o valor de zakar = lembrar para aquele povo em formação: "Lembrai-vos deste mesmo dia, em que saíste do Egito, da casa da servidão; pois com mão forte Javé vos tirou de lá..." (Êx 13.3). Por outro do, xakah = esquecer possui o significado de apagar da memória tudo o que Deus fez em favor do ser humano e do mundo. Assim, a recomendação de Moisés transformou-se na mente que deu motivo e razão a toda festa ou celebração comunitária. Por isso a recomendação bíblica é enfática e urgente: "Lembrai-vos e não vos esqueçais" (Dt 9.7).
No Antigo Testamento, os verbos lembrar e esquecer estão muito relacionados à atuação de Deus mundo. Assim, não é encontrada indicação bíblica para que o povo lembre e celebre a data de aniversário de algum líder do povo. A recomendação bíblica é para que o povo lembre, primeiramente, dos atos salvíficos de Deus em favor de homens e mulheres ao longo da história. Ao mesmo tempo, a necessidade de uma ordem na comunidade fez com que os Líderes apelassem para que povo lembrasse dos mandamentos divinos.
A importância de lembrar é, na Bíblia, tão grande e fundamental para a existência da humanidade do povo bíblico que legisladores (Nm 15.39), historiadores (Dt 6.5-9; 26.20-24), sacerdotes (Sl 136), profetas (Jr 2.2; Mq 6.1-5), sábios (Ec 12.1) recomendavam ao povo a guardar na memória, bem como celebrar, os favores de Deus. Para a Bíblia, zakar = lembrar é criar, construir e lançar as bases de um povo, enquanto que esquecer é o mesmo que destruir e fazer morrer a esperança.

No Novo Testamento
A memória é a base da sobrevivência do povo judeu. Começando pela lembrança da criação e a conseqüente manutenção da vida por Deus, passando pelos atos do passado, que confirmam a ação de Deus em favor de seu povo e garantem o futuro escatológico, chega, inclusive, até a perpetuação do nome.
O verbo relembrar aparece poucas vezes no Novo Testamento, sendo que, nestas poucas vezes há uma maior concentração em textos litúrgicos, de modo especial nos textos eucarísticos, isto é, ligados à Celebração da Ceia do Senhor. Paulo usa esse verbo quando ele quer chamar a atenção da comunidade de Corinto sobre a tradição eucarística que ele recebeu (l Co 11.24). Na maioria dos casos, o uso do verbo está associado ao contexto veterotestamentário do relembrar para não morrer. Tanto que, mesmo no uso negativo do verbo que o livro de Hebreus faz, há diálogo com a tradição do AT. Para Hebreus (10.3), o relembrar da tradição mantém viva a consciência do pecado. Deste modo, para a epístola, o sacrifício de Jesus supera esse relembrar constante.
A tradição veterotestamentária fecunda os poucos textos do Novo Testamento, onde a maior parte aponta para a importância do memorial pascal e da própria pessoa de Cristo e se tornam em sinalização presente dos atos salvíficos de Deus. A pessoa de Cristo e o Espírito Santo se tornam em atualização constante da memória salvífica.


F) OVELHA, CARNEIRO

No Antigo Testamento
Entre os elementos da refeição pascal, a carne animal é, no Antigo Testamento, a mais constante, em todas as prescrições. O animal que fornece a carne para o sacrifício pascal é o kebes ou keseb cordeiro macho. A literatura do Antigo Testamento mostra que esse anima era muito querido pelo povo bíblico, por várias razões: (a) o kebes = carneiro era considerado o animal doméstico mais popular, por Israel e os povos vizinhos; (b) em Israel era proibido castra-lo ou mesmo adquiri-lo estéril de outros povo: (Lv 22.24-25); (c) não é por acaso que a legislação determinava o carneiro como animal mais desejado para o sacrifício (Êx 125); (d) ele é usado metaforicamente para exaltar a afetividade entre o ser humano e o animal (2Sm 12,3) que dá força coragem ao pastor para defendê-la do perigo (l Sm 17.34; Ez 34.1-31). Por essas razões, Israel era comparado a uma ovelha desgarrada (Sl 119.176). Contudo, o exemplo mais claro encontra-se no 4º canto do Servo de Javé (Is 52.13-53.12), quando, numa riquíssima metáfora, o povo exilado na Babilônia é comparado a uma inocente ovelha (Is 53.7).
A razão do grande carinho do povo bíblico pelo carneiro ou a ovelha tem um motivo histórico. Inicialmente, Israel foi um povo das estepes que circundavam as cobiçadas regiões agrícolas; após a chegada a Canaã, o povo bíblico alcançou as montanhas da Palestina (Jz 1.19, 27-29), e somente, mais tarde, é que eles conquistaram as planícies, tornando-se agricultores. Assim, o carneiro e a ovelha fizeram parte da história do povo bíblico nas duas primeiras fases de sua vida. Além de alimentar e proteger o povo do frio, esse animal era o símbolo da mansidão.

No Novo Testamento
O Novo Testamento usa o termo cordeiro poucas vezes. A partir da tradução da Bíblia Hebraica para o grego, (Septuaginta), há uma distinção entre a ovelha (próbaton) e cordeiro (amnós). Amnós designava o cordeiro de um ano. Essa condição era requerida para o sacrifício expiatório da tradição veterotestamentária. O cristianismo em seus escritos canônicos usa a figura do cordeiro para explicar a morte de Jesus. Ele aparece como o cordeiro que redime todo o povo (Jo 1.29-34; I Pd 1.19).
Com isso, o escândalo da cruz ganha um sentido teológico de expiação do pecado. Jesus, com sua morte, assumiu o papel de cordeiro que, mediante o sangue, expia o pecado. Esse sentido vicário surge como uma releitura do impacto negativo que a cruz causou na comunidade (que Paulo define com o termo escândalo).

G) REFEIÇÃO PASCAL

No Antigo Testamento
As prescrições para a refeição pascal não são uniformes e fáceis de compreendê-las na ordem cronológica. Todavia, tomemos uma das reportagens encontradas no Antigo Testamento (Êx 12.1-14) para esboçar a qualidade da refeição pascal.
Provavelmente, este texto contém alguns elementos primitivos dessa celebração. Primeiro, o sacrifício da ovelha deveria ser realizado no crepúsculo do dia 14 do 1º mês do ano. Segundo, o animal a ser sacrificado deveria estar escolhido e separado a partir do dia 10. Terceiro, a oferta deveria ser comida por todos os membros da família, bem como dos vizinhos e amigos convidados. Quarto, o animal deveria ser escolhido do rebanho jovem de carneiro, não devendo apresentar qualquer defeito ou mancha. Quinto, o sangue do carneiro deveria ser passado nas portas e nas travessas das casas. Sexto, a carne do carneiro sacrificado deverá ser assada no fogo e comida, à noite, acompanhada de pães ázimos e ervas amargas. Sétimo, era proibido comer carne crua ou cozida na água, bem como algumas partes do animal, como a cabeça, as vísceras e as pernas. Oitavo, toda a refeição prescrita deveria ser comida apressadamente, numa atmosfera de dramatização, isto é, com lombos cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. Nono, as ofertas deveriam ser comidas dentro da casa, até o alvorecer. O que restasse dessa refeição deveria ser totalmente queimada.
De tudo o que foi esboçado, a partir do relato de Êxodo 12.1-14, algumas conclusões ficam salientes: (1) essa liturgia pascal quer destacar a importância da família para a sobrevivência futura do povo bíblico; (2) o valor da mesa de refeição não é somente para o alimento físico, mas também serve para o fortalecimento dos laços comunitários e com Deus; (3) essa reunião destinava-se manter viva a memória de libertação do povo, através da dramatização dos fatos ocorridos durante o processo de fuga da escravidão egípcia.

No Novo Testamento
A refeição comunitária é um dos elementos importantes na fé israelita. Na fé veterotestamentária, ela define etnia e família. Por isso, era uma questão complicada para um judeu a refeição com um não judeu. O cristianismo conservou esse elemento importante da fé cristã, mas dando-lhe um sentido mais amplo, onde a refeição definia o povo de Deus, que não era retratado nem sanguineamente e nem geograficamente, mas sim pelo conceito da confissão de fé (aqueles que fazem a vontade de meu Pai).
Nos eventos pascais que marcaram a paixão de Cristo, a refeição inicia e conclui o drama. Antes da prisão, Jesus come a refeição pascal com seus discípulos e institui o memorial da Páscoa. Após a ressurreição, Jesus revive a refeição pascal, comendo com os discípulos (Lc 24,30ss; Mc 16.14).


H) RESSURREIÇÃO

O conceito de ressurreição é um conceito muito tardio na fé judaica. Alguns profetas anunciaram a ressurreição do povo como uma expectativa de redenção do povo. A ressurreição do indivíduo só vai aparecer no pensamento judaico a partir do 2º século a.C. É uma das expectativas importantes que irá fecundar o pensamento apocalíptico, que surge nesse período. Deste modo, soma-se a ressurreição dois outros importantes temas teológicos: fé em um mundo vindouro, que significaria a intervenção definitiva de Deus na história humana e o julgamento escatológico, onde os bons serão punidos e os injustos serão condenados.
No conceito de ressurreição, mais do que a vitória definitiva da vida sobre a morte, aparece o conceito da justiça divina que será exercida no momento da implementação definitiva do Reino de Deus (Reino da Justiça). É comum nos extratos mais antigos do Novo Testamento o uso do verbo levantar (egeiro) no passivo, demonstrando com isso a ação divina na salvação de Jesus da morte. Este sentido é, também, aplicado a comunidade cristã a qual participa da morte e, conseqüentemente, da ressurreição de Jesus.


I) JEJUM

Jejum - na língua hebraica sum - é a abstenção de alimento por um espaço de tempo. O jejum era um elemento da prática religiosa israelita. Todavia, ele era também praticado por pessoas de muitas religiões antigas. No Antigo Testamento, o jejum tem alguns objetivos:
  1. ele sinaliza o pesar de alguém, em vista do falecimento de um ente querido (lSm 31.13; 2 Sm 1.12; 3.35) ou de um desastre nacional (Ne 1.4);
  2. ele mostra o sentimento de arrependimento de alguém, por um gesto indevido. Essa atitude de arrependimento caracteriza-se como um gesto de auto-humilhação (Ne 9.1-3; Jr 14.12; Jl 1.14; S1 35.13-14);
  3. o jejum é um exercício de fé destinado a chamar a atenção de Deus, em vista de um perigo iminente (2Sm 12.16-25; Jr 36.9; Jn 3,5);
  4. o jejum acontece quando alguém tem que tomar uma decisão difícil ou iniciar uma missão importante e espinhosa (Et 4.16). A prática do jejum não teve, na Bíblia, aprovação unânime do povo. Alguns profetas criticaram a prática do jejum, porque ele tinha se tornado um rito meramente externo sem sentimento interior (Is 58.1-14; Jr 14,2; Zc 7.1-7). Após a destruição de Jerusalém (587 a.C.) e o exílio na Babilônia, houve uma enorme valorização da prática do jejum.

No Novo Testamento, o jejum é pouco citado, provavelmente em razão da excessiva valorização dada pelos fariseus. Jesus mostrou-se indiferente quanto ao jejum (Mt 6.16-18; Mc 2.18-20), mas não o excluiu (Mt 4.1-11). Antes, sugere que ele seja praticado às ocultas, em casa, para que ele não se torne um meio de promoção pessoal. A Igreja Primitiva adotou o jejum (At 13.2-3; 14.23) como preparação para a escolha de seus líderes, mas nas cartas dos apóstolos, o jejum não é mencionado.

*Estudo produzido pelos profs. da FaTeo Tércio Machado Siqueira, professor de Antigo Testamento, e Paulo Roberto Garcia, professor de Novo Testamento

*Outro texto sobre a Quaresma http://mestresteologiaedebates.blogspot.com.br/2012/02/quaresma-viagem-para-pascoa.html

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Eu estou indo para sempre!!!




Em 23 de agosto de 1683 - um dia antes de morrer - John Owen (Um gigante na história da igreja)  ditou uma carta final para seu amigo Charles Fleetwood. Parte dela diz:


"Eu estou indo para Ele a quem a minha alma tem amado, ou melhor, que me amou com um amor eterno, que é todo fundamento de toda minha consolação. A passagem é muito cansativa e sofrida, através de fortes dores de vários tipos que são acompanhadas de uma febre intermitente. . . Eu estou deixando o navio da igreja em uma tempestade, mas enquanto o grande piloto está nele a perda de um pobre remador será desprezível."


Apesar de ser um dos maiores nomes na história da igreja neste mundo, John Owen entendeu, como todos devemos entender, que depois de vivermos totalmente para Deus aqui, devemos partir em paz sabendo que é Deus quem edifica e guarda sua igreja e não nós. Somos apenas pobres remadores. O capitão levará o barco até o porto: “Eu edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não poderão vencê-la.” - Mateus 16:18 – Ele edifica e garante a entrada de cada santo, cada homem regenerado que compõe a Sua igreja, na glória: “Àquele que é poderoso para impedi-los de cair e para apresentá-los diante da sua glória sem mácula e com grande alegria, ao único Deus, nosso Salvador, sejam glória, majestade, poder e autoridade, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor, antes de todos os tempos, agora e para todo o sempre! Amém.” - Judas 1:24-25


Somos apenas remadores, talvez não como John Owen foi, mas ainda assim remadores. Remem enquanto esse é o tempo determinado para nós fazermos isso. Depois Ele nos receberá na glória e continuará edificando Sua igreja.


Fonte:http://www.josemarbessa.com

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Papa Bento XVI pede “verdadeira renovação” da Igreja Católica, “desfigurada” por sucessão de “escândalos”



Na primeira missa após o anúncio de sua renúncia, o Papa Bento XVI afirmou que a Igreja Católica “está desfigurada” por “divisões em seu corpo eclesiástico”.

As declarações de Bento XVI na celebração de ontem, 13/02, foram vistas como pistas dos motivos pessoais, e não admitidos publicamente pelo Papa, que o levaram à decisão histórica de abrir mão do pontificado.

Antes do início da missa de cinzas, o Papa afirmou que sua opção pela renúncia foi feita “em plena liberdade, pelo bem da Igreja”. Já no discurso durante a missa, voltou a criticar as disputas políticas que geram escândalos: “Jesus denunciou a hipocrisia religiosa, o comportamento que quer aparecer, a atitude que busca aplauso e aprovação”, observou.

E falou indiretamente sobre sua opção pela renúncia ao afirmar que poucos se dispõe a lutar contra o mal: “Mesmo nos nossos dias, muitos estão prontos para rasgar as vestes diante de escândalos e injustiças, naturalmente cometidas por outros, mas poucos parecem disponíveis para agir sobre seu próprio coração, sua própria consciência e suas próprias intenções”.

Hoje, 14/02, durante uma reunião com o clero, Bento XVI pediu uma “verdadeira renovação” da Igreja Católica: “Temos que trabalhar para que se realize verdadeiramente o Concílio Vaticano II e se renove a Igreja”, pontuou, em sua última reunião com os Sacerdotes de Roma antes de sua renúncia.

Após  a reunião, Bento XVI afirmou que pretende se isolar após entregar o pontificado: “Mesmo me retirando para rezar, estarei sempre perto de todos vocês e tenho certeza que vocês estarão perto de mim, mesmo se eu permanecer escondido do mundo”, disse, segundo informações do G1.

Por Tiago Chagas, para o Gospel+

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Papa Bento XVI anuncia renúncia ao pontificado




"Pope Benedict XVI to resign: His announcement"
washingtonpost.com

Tradução de João Cruzué

"Caros Irmãos,

Eu os convoquei para este Consistório, não apenas para as três canonizações, mas também para comunica-los uma decisão de grande importância para a vida  da Igreja. Depois de ter repetidamente examinado minha consciência diante de Deus, eu cheguei à certeza de que minhas forças, devido a uma idade avançada, não são mais adequadas para o exercício do ministério pedrino.

Eu estou bem consciente que este ministério, devido  sua natureza ser  essencialmente espiritual,  deve ser levado avante  não apenas com palavras e feitos, senão com orações e sofrimento.  Entretanto, no mundo atual, sujeito a tantas e rápidas mudanças e  sacudido por questões de profunda relevância para  a vida e fé, para governar a  barca de São Pedro e proclamar o Evangelho,  tanto as forças da  mente e do corpo  são necessárias, mas nestes últimos  meses elas têm se deteriorado em mim  ao ponto de  reconhecer minha incapacidade para cumprir adequadamente  o ministério a mim confiado.

Por esta razão, e bem ciente da seriedade deste ato, com  toda liberdade eu declaro que  renuncio ao ministério do Bispo de Roma, sucessor de São Pedro, outorgado a mim em 19 de abril de 2005 pelos Cardeais, e  deixo a Santa Sé em Roma, a Sé de São Pedro, em 28 de fevereiro de 2013 que ficará vacante, e um conclave terá que ser convocado por aqueles que são competentes para isto,  para eleger o novo Supremo Pontífice.

Caros Irmãos, eu os agradeço  sinceramente por todo amor e trabalho com os quais suportaram  a mim e ao meu ministério e eu peço perdão por todos os meus defeitos. E agora,  vamos deixar à Santa Igreja aos cuidados do  nosso Supremo Pastor, Nosso Senhor Jesus Cristo, e imploro a sua Mãe Maria, para que possa assistir ao Conselho de Cardeais com sua maternal solicitude, em eleger o novo Supremo Pontífice.  Com relação a mim, eu desejo ainda devotadamente servir à Santa Igreja de Deus no futuro através de uma vida dedicada à oração.

Do Vaticano, em 10 de fevereiro de 2013.
BENEDICTUS PP XVI



domingo, 10 de fevereiro de 2013

As igrejas e a evasão do carnaval: a liberdade, o fundamentalismo e o cinismo



Uma resposta ao artigo publicado no Jornal O Globo em 03/02/13, intitulado “as velhas baianas somem da passarela“.

A cultura dos povos são mutáveis por diversas razões, sejam elas pelo incremento de novas ideias, modificações das crenças, pelos comportamentos tornarem-se anacrônicos, pela evolução social ou por qualquer outra razão que a sociedade permitir. Não há que se falar em cultura imposta. Cada grupo, inclusive, é o responsável pela manutenção dos seus elos e traços culturais.

As religiões possuem uma dialética bem democrática também. As pessoas escolhem mudar de religião, ou manterem-se nelas, por razões muito íntimas.  Normalmente buscam nos templos o bem estar espiritual, buscam encontrar Deus. Não acredito que a maioria das pessoas escolham religiões por questões culturais, mas por necessidades espirituais. As pessoas não são fervorosas de suas religiões apenas por imposição familiar ou social. O fervor está associado a fé, à certeza que a pessoa tem e aos resultados que obtém de suas práticas, especialmente em um país em que a liberdade religiosa é garantida.

Há pessoas que defendem que os evangélicos estão causando prejuízos aos quadros do carnaval. Isto porque pessoas de religiões que participam ativamente do carnaval estariam convertendo-se ao evangelho e, com isso, esvaziando setores de escolas de samba e outros. Não faz sentido querer cultivar pessoas em uma ou outra religião para atender interesses econômicos difusos imersos no carnaval. As pessoas não escolherão permanecer ou mudar de uma religião por conta do carnaval ou por qualquer outra festa popular. As pessoas mudam de religião, e nela se mantém, se encontrar conforto espiritual para si e para a sua família.

Por outro lado, nenhum grupo religioso, de sã consciência, pregaria a sua mensagem apenas para esvaziar uma festa popular ou outra religião. As pessoas pregam as mensagens que creem, e, a partir daí, as outras, escolhem se converter, ou não. Depois de convertida, uma pessoa pode, inclusive, se reconverter à religião anterior. A Liberdade Religiosa é um Direito Fundamental previsto na Constituição da República do Brasil e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ser de qualquer religião ou de nenhuma delas é uma escolha personalíssima.

Os religiosos que acreditam no que pregam anunciam às outras pessoas, especialmente aos que sofrem, como encontram conforto para seus sofrimentos, em suas dúvidas, crises e angústias. Não tem como privar uma pessoa de compartilhar este conforto a outra. O carnaval ocorre uma vez por ano e, entre um carnaval e outro, as pessoas têm muitas necessidades a serem supridas.

Por exemplo, as pessoas perdem parentes e amigos que dirigem embriagados, ou mesmo algumas mulheres descobrem que seus maridos envolveram-se com outras mulheres e as engravidaram, ou pessoas descobrem que foram contaminadas com o vírus da aids durante as liberalidades que algumas festas permitem, outras sofrem ou praticam violência. Estas pessoas, depois do carnaval ou não, saem em busca de auxílio, de amparo e de apoio. Quando a festa acaba e o sofrimento vem, a estrutura de exploração econômica-sexual-cultural-filosófica-religiosa sai e deixa os “foliões” ao relento.

O carnaval é uma época propícia para diversas tragédias sociais. Por exemplo, enquanto alguns ensinam: “use camisinha”, o evangelho ensina: “respeita a sua família”. O primeiro conselho ataca o efeito, o segundo ataca a causa. Nesse cenário sociológico-econômico-religioso pessoas também sentem-se oprimidas por espíritos malignos que as atormentam, humilham, exigem coisas terríveis delas. Essas pessoas, em nome de um fundamentalismo histórico-cultural-religioso-econômico-antropológico-artístico, ou qualquer outro, não poderão buscar liberdade do sofrimento? Terão que, em nome do carnaval, manterem-se escravas do seu   sofrimento para alegria de alguns? Trata-se de um objeto de diversão e não de um ser humano?

Evangélicos não dificultam a ocorrência do carnaval, mas ensinam que as pessoas não devem: embriagar-se, prostituir-se, agredir-se, expor sua nudez publicamente, porque o nosso corpo é templo do Espírito Santo. Isso nada tem a ver com o carnaval. Então as pessoas deveriam por um decreto moral-intelectual-fundamentalista manter-se na ética de agradar o que é bom para quem paga? Destruir-se em prol da diversão alheia?

O ano das pessoas, pobres ou ricas, tem 365 dias e todos querem ser felizes. Os que defendem tudo que assistem no carnaval querem ver suas filhas e mulheres despidas rebolando para o mundo em troca de fama de alguns minutos? Querem escravos e escravas que se mantenham em sua “cultura” para atender os caprichos do glamouroso carnaval dos grandes camarins e da alta classe social? Se a coisa é tão boa assim, porque estes aguerridos defensores das práticas do carnaval não convocam seus familiares e amigos para povoarem as brechas deixadas por aquelas pessoas que optam por se converter ao evangelho e perdem o prazer pelas práticas anteriores? Querem manter o status quo do carnaval com o sacrifício alheio?

Se dizer às pessoas que não se embriaguem, não exponham seus corpos publicamente, não sejam objeto de luxúria, não sejam escravizadas por espíritos, por pessoas e por nada é fundamentalismo religioso, querer convencer homens e mulheres a exporem-se pessoalmente, e às suas famílias, e, depois da festa, curtirem, no anonimato, as suas dores, humilhações, doenças, destruição de suas reputações e de suas famílias é uma forma de fundamentalismo cínico e egoísta, que anula qualquer tipo de racionalidade cultural, religiosa ou filosófica.

Se as pessoas encontrarem paz, conforto, segurança, respeito, esperança e bem estar para si e para as suas famílias no carnaval, ou em qualquer religião, as igrejas que pregam o evangelho estarão em risco.  Do contrário, o fluxo vai continuar o mesmo e a cada dia faltarão mais quadros, e teremos nas igrejas mais pessoas recuperadas de seus sofrimentos e opressões. Os proselitistas da festa da carne devem arrumar argumentos melhores para convencer as pessoas a submeterem-se aos riscos carnavalescos, juntamente com as suas famílias, pois, do contrário, as pessoas farão a escolha mais racional e segura para si. Em uma democracia há que se celebrar a liberdade de escolha: se as pessoas deixam de lado os tamborins do carnaval para tocarem a trombeta em Sião, haveremos de convir que em Sião estão encontrando conforto, paz, esperança e salvação e, a partir daí, proclamarão como o Rei Davi: “Cantai louvores ao Senhor, que habita em Sião; anunciai entre os povos os seus feitos”. Salmos 9:11. Com tantas pessoas proclamando os feitos do Senhor Jesus em suas vidas, não há como outras também não encontrarem o Caminho.

Fonte:http://www.prazerdapalavra.com.br

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Chamados/as para o compromisso com o Reino




Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu Antes participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus, Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos;E que é manifesta agora pela aparição de nosso Salvador Jesus Cristo, o qual aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho; 



 A segunda carta a Timóteo faz parte dos escritos neotestametários que denominamos de “cartas pastorais” por ser escrita em tom pessoal e ter a intenção de animar, apoiar o destinatário em seu ministério junta as comunidades do início do cristianismo. Timóteo foi um companheiro de Paulo no trabalho missionário de divulgação do Evangelho, acompanhando-o na segunda e na terceira viagens missionárias. Era alguém em quem Paulo tinha plena confiança, além de reunir todas as condições para tornar-se aliado do apóstolo em seus projetos.O nome Timóteo (aquele que honra a Deus) diz muito do seu caráter.



 O texto do capítulo um, versículos de oito a dez indica que Timóteo estava enfrentando situação difícil e as palavras a ele dirigidas têm o intuito de confortá-lo e lhe servir de estímulo à perseverança na fé. Ele é instado a tomar parte nos sofrimentos pelos quais o próprio Paulo teve que passar em nome do Evangelho. Fica clara a ideia de que a tribulação é parte inerente ao anuncio do evangelho de Cristo em sua inteireza. Desde o chamado de Jesus aos primeiros discípulos essa idéia esteve muito clara. O próprio Jesus advertia: quem deseja ser meu discípulo negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me... Se prestarmos atenção para o fato de que cruz era na verdade um instrumento de tortura e morte aos condenados, notaremos que em outras palavras Jesus estava dizendo: quem quer ser meu discípulo prepare-se para enfrentar muitas tribulações.



 É claro que viver na perspectiva do Evangelho não apenas nos traz tribulações e dificuldades, mas, na medida em que decidimos fazer do evangelho nosso modelo de vida, os valores fundamentais que passamos a adotar, os códigos de conduta, a maneira de ver e de encarar a vida adquirem um sentido que se diferencia da sociedade vigente. É justamente ai que necessitamos ter firmeza de propósitos para não fraquejarmos diante das pressões que desejam nos fazer desistir do Evangelho. Provavelmente este era o contexto de Timóteo no momento em que recebeu esta carta.



 Em situações em que nossa fé é colocada à prova, é de fundamental importância lançarmos plena confiança em Deus e em sua graça. Ele não apenas nos salvou por intermédio do seu filho, mas também nos sustenta nos momentos de adversidade. É assim que, mesmo em situações difíceis, o jovem Timóteo se mostra corajoso e perseverante no anuncio da Palavra de Deus. O seu exemplo é um grande estímulo para nós que vivemos em mundos e tempos tão diferentes.



 Confiando na graça de Cristo, podemos anunciar as boas novas em todos os contextos em que houver abertura para a partilha da fé. Mas, especialmente neste mês de junho, período em que refletimos a respeito da unidade cristã, precisamos perseverar naquilo que Deus nos deu como povo metodista.          



 Irmãos e irmãs, é tempo de manifestarmos amor fraternal, fé corajosa, trabalho perseverante. É tempo de manifestarmos coerência entre aquilo que cremos e o que vivemos em nosso dia-a-dia. O mundo pende cada vez mais para um egoísmo maligno em que cada pessoa apenas busca seus próprios interesses. Até mesmo nas várias expressões de fé que existem dentro do cristianismo encontramos a tendência ao egoísmo, ao exclusivismo e à competição desenfreada.



 Deus nos chama a pagarmos o preço da unidade naquilo que é essencial. A termos a coragem para dialogar com aqueles que pensam diferente de nós, mas, sobretudo, a preservarmos nosso legado wesleyano como uma dadiva. Nada disso é fácil, mas, sustentados na graça, apoiemo-nos uns aos outros assim como Paulo fez a Timóteo de modo que o mundo perceba Deus nos nossos gestos mais simples.



 Que Deus seja com cada um/a de vocês.



 Pastor Willian de Melo

* Willian de Melo é Pastor da Igreja Metodista Central de São José dos Campos

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Silas Malafaia: o Macunaíma evangélico




No clássico Macunaíma, de Mário de Andrade, o Brasil conheceu a figura do herói sem caráter. Todos os povos gostam de ter seus heróis. Todos os grupos acham importantes as figuras dos heróis. Mas as minorias (ou aqueles que se julgam minorias) necessitam de heróis.

O povo evangélico, acostumado e já tendo assimilado a figura histórica de minoria no Brasil, não é diferente. Carece de heróis à medida que angaria, no decorrer de sua história, inimigos.

A figura do inimigo faz parte do modus vivendi evangélico desde sua chegada ao país (falo do contexto brasileiro, sem ignorar que isso não é privilégio nosso). Sempre precisamos deles. Quando aqui chegamos, os inimigos eram os católicos. Eram eles os inimigos da fé, aqueles que precisavam ser convertidos. Como fumavam, bebiam, frequentavam clubes, cinemas, casas de dança, a prática conversionista evangélica tratou de demonizar todas essas atividades (esquecendo que grande parte das missões evangélicas eram sustentadas pelas volumosas ofertas de plantadores de fumo da região do Texas/EUA). Até hoje carregamos traços desse momento histórico.

Outro inimigo voraz foi o comunismo. É óbvio que assim seria. A ética protestante no início do século XIX foi fortemente influenciada e influenciadora (num movimento de retroalimentação) do capitalismo que varreu o ocidente. Era preciso combater esse grande inimigo, perseguidor dos cristãos e favorecedor da ideologia ateia. Sem entrar no mérito da questão, só vale aqui dizer que, durante muitos anos, esse foi o inimigo a ser vencido. Livros e livros foram escritos sobre essa realidade, e aqueles que manifestassem qualquer tipo de pensamento de “esquerda” já eram tachados de comunistas e, muitas vezes, de satanistas.

Durante quase cem anos de presença protestante no Brasil os inimigos foram os católicos e os comunistas, até explodirem os movimentos pentecostais e suas vertentes de Batalha Espiritual. A essência belicosa protestante aflorou, agora nas regiões “celestiais” e os inimigos de carne e osso ganharam aliados “invisíveis” e as teorias de conspiração dominaram o pensamento evangélico. Nessa onda vieram os discos rodados ao contrário para se ouvirem mensagens satânicas, os filmes da Disney como fomentadores de destruição através de suas diabólicas mensagens subliminares e o movimento denominado Nova Era. Criou-se, desde então (e muitos ainda vivem nisso) uma neurose evangélica com tudo aquilo que faz sucesso, procurando as coisas ocultas e malévolas presentes em tudo. Paranóicos, muitos isolaram-se até mesmo de seus grupos cristãos, pois começaram a ver demônios em tudo.

Toda essa enorme introdução faz-se necessária para que entendamos o que está por trás do sucesso de nosso Macunaíma Malafaia: Nossa alma belicosa e nossa necessidade de heróis.

Malafaia não é bobo! Sabe dessa nossa sede de guerra (o nosso GENERAL é Cristo, lembram?), sabe da necessidade que toda “minoria” tem de ter aqueles que enfrentam os gigantes (transformando Davi na melhor alegoria das lutas contra os grandes e poderosos), sabe, como psicólogo, o quanto a mente infantil precisa de defensores, já que não sabe caminhar por adversidades.

Pois Silas Malafaia, o nosso “herói sem caráter”, assumiu, e bem, esse papel.

Dono de uma oratória inflamada, o verborrágico líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (denominação criada por ele numa divisão estrategicamente arquitetada) vestiu a capa de defensor da minoria evangélica (já nem tão minoria assim) e, quixotescamente, elegeu os homossexuais como seus moinhos de vento a serem destruídos.

Como os evangélicos precisam de heróis e tem uma relação com a sexualidade doentia e castradora, nosso Macunaíma encontrou terreno fértil para suas investidas e para angariar investidores. Claro! Nosso povo é capaz de doar o que não tem para alguém que vá defender a fé, tão atacada pelos nossos inimigos.

O personagem de Mário de Andrade, mentiroso, ardiloso, matreiro, fazia de tudo para alcançar o seu objetivo: a pedra Muiraquitã, presente de sua mulher e que, para ele, tinha propriedades mágicas.

Silas Malafaia tem sua Muiraquitã: o dinheiro! Isso fica bem claro a cada nova invenção para arrecadar ofertas. Desde bíblias de R$ 900,00 até a promessa de bênçãos materiais àqueles que ofertarem ao seu “singelo” ministério.

Malafaia representa, infelizmente, parte do pensamento evangélico brasileiro. A pior parte! Mas representa.

Malafaia representa o pensamento evangélico ainda belicoso, necessitando de inimigos e vociferando contra estes toda sorte de versículos bíblicos condenatórios, pois a Bíblia é a nossa arma, nossa metralhadora contra Satanás.

Malafaia representa a ganância evangélica pelo poder. Assume claramente que, apesar de não ser político, quer trafegar entre eles e influenciá-los. Sua sede de poder é latente, gritante. E, claro, celebrada pelo povo que “descobriu” que não pode mais ser “cauda”, tem que ser “cabeça”, nem que pra isso perca a cabeça e a “cauda”…

Malafaia é contraditório e “pilantra”! Porque, se conhece a palavra como diz conhecer, sabe que o que fala e promete é uma contradição. E, contradizendo-se, abusa, de má-fé, da boa fé das pessoas que acreditam nele, logo, é “pilantra”! E não sou eu quem o diz, é ele mesmo, em um vídeo antigo (da época em que ainda tinha bigodes e não tinha feito implante capilar) onde afirma categoricamente que “pastor que promete benção material em troca de ofertas é pilantra, é safado.”

Malafaia representa a ignorância do povo que, após crescer desordenadamente, se acha no direito de legislar e impor suas doutrinas e convicções a um Estado, composto de pessoas das mais variadas formações e tendências religiosas. Dane-se! O “deus verdadeiro” tem que ser empurrado goela abaixo daqueles que por anos o rejeitaram. Esse é o castigo por zombarem de Deus (fora o inferno que os aguarda, na “outra vida”).

Malafaia representa o ódio dos evangélicos por aqueles que não se enquadram em suas leis e dogmas. Suas palavras carregadas de preconceito e raiva, exalam algo que, nem de longe, faz lembrar a doçura e a mansidão do Mestre de Nazaré.

Malafaia é o herói que o povo evangélico quer… belicoso… ganancioso… brigão… vociferante… “corajoso”… mas é o herói sem caráter pois veste essa capa exatamente para ter em troca sua Muiraquitã… a grana que sustenta seus sonhos nababescos e extravagantes.

O povo vibra com a “coragem” de seu herói… que bate em quem for preciso, mesmo que depois procure espaço no “inimigo” (a Globo taí pra mostrar…). Não é raro ouvir a seu respeito: “não gosto dele, mas ele tem coragem de peitar todo mundo”. Quando ouço isso penso: “ele conseguiu! Vendeu a imagem de herói! E compraram a imagem vendida!” Para explorar o povo depois dessa imagem construída é um passo muito pequeno… e fácil!

Malafaia usa o pior dos ardis de um enganador: usar a verdade para mentir. Ele dispara sua metralhadora de versículos bíblicos e leva o povo belicoso, que adora ver o inimigo “metralhado”, ao delírio, certo de que, finalmente, surgiu alguém com coragem para enfrentar os “incircuncisos”…

Sei que muitos dirão: você está julgando! Não! Estou apenas apontando as ardilosas artimanhas desse senhor que se arroga representantes do povo evangélico brasileiro. Tire você mesmo as suas conclusões.

Minha esperança é que os olhos sejam abertos e a gana evangélica por heróis e inimigos seja expulsa de nós em nome de um amor que é capaz de amar os inimigos. E falo de Malafaia como um inimigo do Evangelho, que deve ser denunciado, mas amado… por mais difícil que seja. E por impossível que pareça, ainda creio que um dia ele possa se arrepender das negociatas em nome de Deus, e, como Zaqueu (não o da música, mas o da narrativa bíblica) devolver aos pobres aquilo que lhes foi roubado em nome de “Deus”.

Por enquanto, fico com a imagem de Macunaíma, o herói sem caráter… hoje, triste metáfora daquele que quer, por força, representar o nosso povo que se diz “povo de Deus”.



Com tristeza,

José Barbosa Junior – São Paulo – 04/02/2013

Fonte: http://www.crerepensar.com.br

sábado, 2 de fevereiro de 2013

A Revelação da Justiça de Deus




por

John Stott


Comentário Sobre Romanos 3:21-26





Todos os seres humanos, de todas as raças e classes sociais, de todos os credos e culturas, tanto judeus como gentios, imorais e moralistas, religiosos e ateus - todos, sem exceção, são pecadores, culpados, indesculpáveis e sem defesa diante de Deus! Eis o quadro terrível e desolador com que Paulo descreve a situação da raça humana em Romanos 1.18 - 3.20. Sem um raiozinho de luz, nenhuma fagulha de esperança, sem a mínima perspectiva de socorro.

"Mas agora" - Paulo interrompe de súbito - o próprio Deus interveio. "Agora" parece ser uma referência marcada por três dimensões: uma lógica (a elaboração do argumento), uma cronológica (o momento presente) e outra escatológica (chegou um novo tempo). [1] Depois da longa e escura noite, raiou o sol, amanhece um novo dia e o mundo é inundado de luz. "Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da lei..." (21a). É uma revelação totalmente nova, centralizada em Cristo e Sua cruz, se bem que dela "testemunham a Lei e os Profetas" (21b) em previsões e prefigurações parciais. E assim Paulo contrasta a injustiça de uns e a auto-justificação de outros com a justiça de Deus. Em contraposição à ira de Deus sobre quem pratica o mal (1.18; 2.5; 3.5) ele anuncia a graça de Deus, que envolve os pecadores que crêem. Diante do julgamento, apresenta-nos a justificação.

Paulo começa retratando a revelação da justiça de Deus na cruz de Cristo e lançando os alicerces para o evangelho da justificação (3.21-26). Em seguida defende o seu evangelho contra as críticas dos judeus (3.27-31). E finalmente, ilustra-o através da vida de Abraão, que foi, ele mesmo, justificado pela fé, tornando-se assim o pai espiritual de todos os que crêem (4.1-25).


a. A justiça de Deus se revela na cruz de Cristo (3.21-26)

Os versículos 21-26 constituem um bloco firmemente compactado, que o professor Cranfield acertadamente chama de "o centro e o cerne" do todo que constitui a parte principal da carta; [2] já o Dr. Leon Morris diz que eles seriam "possivelmente o parágrafo mais importante que jamais se escreveu". [3] A sua expressão-chave é "a justiça de Deus", expressão já considerada por nós quando ela ocorreu a primeira vez, em 1.17. Aqui, em 3.21, a tradução da NVI refere-se a uma justiça que provém de Deus, frisando dessa maneira a iniciativa salvadora que ele tomou a fim de conceder aos pecadores a condição de justos aos seus olhos. Os dois versículos (1.17 e 3.21) dizem que essa justiça foi "revelada" ou "manifestada". Os dois a apresentam como algo inovador, ao dizerem que ela se dá a conhecer ou "no evangelho" (1.17) ou independente da lei (3.21). Ambos, no entanto, a representam como um cumprimento das escrituras do Antigo Testamento, o que demonstra que não se trata de uma elaboração posterior da parte de Deus. E dos dois afirma que podemos ter acesso a ela pela fé. A única diferença significativa entre estes dois textos está no tempo em que são usados os verbos principais. De acordo com 3.21, uma justiça de Deus se manifestou, no pretérito perfeito, uma provável referência à morte histórica de Cristo e suas conseqüências, válidas até hoje, enquanto que em 1.17 a justiça de Deus é revelada (tempo presente) no evangelho, o que deve significar toda vez que ele é pregado.

No versículo 22 Paulo volta a anunciar o evangelho, repetindo a expressão justiça de Deus, e agora acrescenta mais duas verdades a seu respeito. A primeira é que ela vem mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que crêem. Além disso, ela é oferecida para todos porque todos têm necessidade dela. Não há distinção entre judeus e gentios nesse aspecto (conforme Paulo vem argumentando nos versículos 1.18 - 3.20) ou entre qualquer outro grupo humano, pois todos pecaram (hemarton - o passado cumulativo de todo mundo é resumido aqui pelo uso do tempo aoristo) e estão destituídos (um presente contínuo) da glória de Deus (230. Essa "glória" (doxa) de Deus poderia significar Sua aprovação ou louvor, que todos perderam; [4] o mais provável, porém, é que seja uma referência à imagem ou glória de Deus, segundo a qual todos nós fomos criados [5] as deixamos de viver de conformidade com ela. É claro que o pecado pode manifestar-se em diferentes níveis e dimensões; mas ainda assim ninguém chega sequer a aproximar-se dos padrões de Deus. Handley Moule expressa isso de maneira dramática: "A prostituta, o mentiroso e o assassino estão destituídos dela [da glória de Deus]; mas você também está. Pode ser que eles estejam no fundo de uma mina e você no cume da montanha; no entanto, tem tanta capacidade quanto eles de encostar nas estrelas". [6]

A segunda inovação contida nestes versículos é que agora, pela primeira vez, "uma justiça que provém de Deus" é identificada com a justificação: sendo justificados gratuitamente por sua graça...(24a). A justiça de (ou que provém de) Deus é uma combinação de três elementos: o caráter justo de Deus, a Sua iniciativa salvadora e a Sua dádiva, que consiste em conferir ao pecador a condição de justo perante Ele. Trata-se de Sua justificação justa do injusto, a maneira justa como Ele "justifica o injusto".

Justificação é um termo legal ou jurídico, extraído da linguagem forense. O contrário de justificação é condenação. Os dois são pronunciamentos de um juiz. Dentro do contexto cristão eles são os veredictos escatológicos alternativos que Deus, como juiz, poderá anunciar no dia do juízo. Portanto, quando Deus justifica os pecadores hoje, está antecipando o Seu próprio julgamento final, trazendo até o presente o que de fato faz parte dos "últimos dias".

Alguns estudiosos sustentam que "justificação" e "perdão" são sinônimos. Por exemplo, Sandlay e Headlam escreveram que justificação é "simplesmente Perdão, Perdão Gratuito"; [7] já o professor Jeremias, mais recentemente, insiste em dizer que "justificação é perdão, nada mais que perdão". [8] Mas isso com certeza não pode ser verdade. Perdão é algo negativo, é a absolvição de uma penalidade ou uma dívida; justificação tem conotação positiva - é declarar que alguém é justo, é dar ao pecador o direito de desfrutar novamente o favor e a comunhão de Deus. Marcus Loane escreveu: "A voz que anuncia perdão dirá: 'Pode ir. Você está livre da pena que o seu pecado merece.' Mas o veredicto que significa aceitação [sc. justificação] dirá: 'Pode vir. Você é bem-vindo para desfrutar todo o meu amor e a minha presença'". [9] C.H. Hodge esclarece com mais profundidade essa diferença ao elaborar a antítese entre condenação e justificação: "Condenar não é meramente punir, mas sim declara o acusado culpado ou digno de castigo; e justificação não é meramente liberar desse castigo, mas declarar que o castigo não pode ser aplicado com justiça...Perdão e justificação são, portanto, essencialmente distintos. O primeiro é a absolvição do castigo, o outro é uma declaração de que não existe nenhuma base para a aplicação do castigo".[10]

Se justificar não é o mesmo que perdoar ou desculpar, tampouco é o mesmo que santificar. Justificar é considerar ou declarar justa uma pessoa, e não torná-la justa. Este foi um ponto essencial no debate que se deu no século XVI com respeito à justificação. A posição católico-romana, conforme expressa no Concílio de Trento (1545-64), era que a justificação se dá no batismo e que a pessoa batizada, além de ser purificada dos seus pecados, recebe também, simultaneamente, uma justiça nova e sobrenatural. [11] Dá bem para entender o motivo que levou a tal insistência. Foi o medo de que, com uma mera declaração de justiça, a tal pessoa permanecesse em estado de injustiça e não-renovação, podendo até sentir-se encorajada a persistir no pecado (antinomismo). Foi exatamente a crítica que levantaram contra Paulo (6.1, 15) e que o levou a enfatizar com todas as forças que os cristãos batizados tinham morrido para o pecado (de tal forma que não podiam, em hipótese alguma, continuar vivendo nele) e que haviam ressuscitado para uma nova vida em Cristo. Ou, em outras palavras: a justificação (um novo status) e a regeneração (um novo coração), embora não sejam idênticas, são simultâneas. Todo crente justificado foi também regenerado pelo Espírito Santo e, dessa forma, destinado à santificação constante. Ou, se quisermos citar Calvino, "ninguém pode ostentar a justiça de Cristo sem a regeneração". [12] Ou então, "o apóstolo sustenta que quem pensa que Cristo nos confere justificação gratuita sem nos dar novidade de vida está, vergonhosamente, dividindo Cristo em pedaços". [13]

Uma reviravolta importante nesse debate entre católicos romanos e protestantes deve-se à publicação, em 1957, do diálogo do professor Hans Küng com Karl Barth. Nesse trabalho, intitulado Justificação, ele concorda que a justificação é uma declaração divina e que nós somos justificamos somente pela fé. Mas insiste também que as palavras de Deus são sempre eficazes, de maneira que tudo o que Ele pronuncia passa imediatamente a existir. Portanto, quando Deus diz a alguém: "Você é justo", diz ele, "o pecador é justo, de fato e de verdade, exterior e interiormente, integral e plenamente...Em resumo, a declaração de justiça de Deus é...ao mesmo tempo e no mesmo ato...tornar justo". [14] Desta maneira, a justificação é "o ato único que, simultaneamente, declara justo e torna justo". [15] Há aqui, no entanto, uma perigosa ambigüidade. O que Hans Küng quer dizer por "justo"? Se ele quer dizer legalmente justo, de contas acertadas com Deus, então de fato passamos imediatamente a ser aquilo que Deus declarou que sejamos. Mas se ele quer dizer moralmente justo, renovado, santo, então a declaração de Deus não assegura isso imediatamente, mas apenas inicia o processo contínuo e que dura a vida inteira.[16] Esse é o ponto que C. K. Barrett levanta quando alega que justificar não significa tornar justo, mas que " 'justo' significa, não 'virtuoso', mas 'correto', 'limpo', 'inocentado' na corte de Deus". [17]

Voltando agora ao texto de Romanos, e em particular nos versículos 24-26, Paulo ensina três verdades básicas sobre a justificação: primeiro, a sua fonte, de onde ela se origina; depois, a sua base, em que ela se sustenta; e, em terceiro lugar, o meio pelo qual ela é recebida.


a. A fonte de nossa justificação: Deus e a Sua graça.

Nós somos justificados gratuitamente por sua graça (24). Uma verdade fundamental no evangelho da salvação consiste em que a iniciativa da salvação deve-se, do início ao fim, a Deus o Pai. Qualquer formulação do evangelho que tire a iniciativa de Deus e a atribua a nós, ou mesmo a Cristo, já não é mais bíblica. Nós, com toda certeza, não tomamos a iniciativa, pois éramos pecadores, culpados e condenados, sem saída nem esperança. Tampouco foi Jesus Cristo quem tomou a iniciativa, no sentido de fazer algo que o Pai relutava ou não estava disposto a fazer. Não há dúvida de que Cristo veio por Sua própria vontade e se entregou gratuitamente. Mesmo assim, Ele o fez em submissão à iniciativa do Pai. "Aqui estou, no livro está escrito ao meu respeito; vim para fazer a tua vontade, ó Deus". [18] Quem deu o primeiro passo, portanto, foi Deus o Pai, e a nossa justificação nos veio gratuitamente (dorean, "como um presente") [19] por Sua graça, por Seu favor absolutamente gratuito e completamente imerecido. Graça é isso aí: Deus amando, Deus se humilhando em favor de nós, Deus vindo nos resgatar, Deus se entregando generosamente em Jesus Cristo e por intermédio dEle.


b. A base de nossa justificação: Cristo e sua cruz.

Se Deus justifica gratuitamente os pecadores por sua graça, por que ele faz isso? Baseado em quê? Como é que esse Deus justo pode declara justo o injusto, sem comprometer a Sua própria justiça nem condescender com a injustiça deste? Esta é a nossa pergunta. A resposta de Deus é a cruz.

Não existe em Romanos expressão mais surpreendente do que a afirmação de que "Deus...justifica o ímpio" (4.5). Embora ela só apareça no capítulo seguinte, no entanto será de grande ajuda aqui para ajudar-nos a acompanhar a argumentação de Paulo. Como é que Deus pode justificar o ímpio? No Antigo Testamento, repetidas vezes Deus diz aos juízes israelitas que eles devem justificar os íntegros e condenar os ímpios. [20] Mas é óbvio! Quem é inocente deve ser declarado inocente e quem é culpado deve ser considerado culpado! É um princípio elementar de pura justiça. Mas então Deus acrescenta: "O que justifica o perverso e o que condena o justo, abomináveis são para o Senhor tanto um como o outro". [21] Ele pronuncia também um solene "ai" contra os que "por suborno justificam o perverso, e ao justo negam a justiça". [22] Pois, como declara acerca de si mesmo, "não justificarei o ímpio". [23] Mas é claro! - dizemos de novo - Deus nem sonharia em fazer tal coisa!

Então, como é que Paulo tem coragem de afirmar que Deus faz aquilo que Ele proíbe os outros de fazerem? E que Ele faz o que disse que nunca faria - e que, ainda por cima, o faz habitualmente? E que Ele ainda diz ser "o Deus que justifica o perverso" ou (se é que poderíamos dizer assim) "que torna íntegro quem não tem integridade"? É um absurdo! Como pode o justo Deus agir injustamente, desbaratando assim a ordem moral e invertendo-a completamente? É inacreditável! Ou melhor: seria, não fosse a cruz de Cristo. Sem a cruz, a justificação do ímpio seria injusta, imoral e, dessa forma, impossível. A única razão pela qual Deus "justifica o ímpio" (4.5) é que "Cristo morreu pelos ímpios" (5.6). Só porque Ele derramou o Seu sangue (25) numa morte sacrificial por nós, pecadores, é que Deus pode justificar justamente o injusto.

Aquilo que Deus fez mediante a cruz, isto é, mediante a morte do seu Filho em nosso lugar, Paulo explica através de três expressões deveras significativas. Primeiro, diz que Deus nos justifica por meio da redenção que já em Cristo Jesus (24b). Segundo, Deus o apresentou como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue (25a). Terceiro, Ele fez isto para demonstrar sua justiça...(25b), isso para demonstrar sua justiça no presente, a fim de ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus (26). As palavras-chave são redenção (apolytrõsis), propiciação (hilastêrion) e demonstração (endeixis). Todas as três se referem, não ao que acontece agora, enquanto o evangelho esta sendo pregado, mas ao que aconteceu de uma vez por todas em Cristo e através dele na cruz, sendo a expressão seu sangue uma clara referência à sua morte sacrificial. Associadas à cruz, portanto, vemos uma redenção dos pecadores, uma propiciação da ira de Deus e uma demonstração de sua justiça.


(i) Redenção

A primeira palavra é apolytrõsis, isto é, redenção. É um termo comercial emprestado dos mercados, da mesma forma que "justificação" é um termo legal emprestado dos tribunais. No Antigo Testamento ela era usada para escravos que eram comprados para serem libertados; dizia-se que eles haviam sido "remidos". [24] O termo também era usado metaforicamente com referência ao povo de Israel, que foi "remido" do cativeiro, primeiro no Egito,[25] depois na Babilônia, [26] e em seguida restaurado à sua própria terra. Nós, de igual maneira, éramos escravos ou cativos, presas do nosso pecado e da culpa e completamente incapazes de liberta-nos. Mas Jesus Cristo nos "redimiu", nos comprou e libertou-nos do cativeiro, derramando, como preço, pelo resgate, o seu próprio sangue. Ele mesmo dissera que o propósito de sua vinda era para "dar a sua vida em resgate por muitos". [27] E agora, em conseqüência de sua aquisição ou "salvamento por resgate", [28] nós pertencemos a ele.

(ii) Propiciação

A segunda palavra é hilastêrion, ou seja, propiciação. Muitos cristãos sentem-se envergonhados ou até chocados com esta palavra, porque propiciação significa o ato de aplacar a ira divina, ou de tornar Deus propício. E, em se tratando de Deus, parece-lhes indigno dar-lhe um conceito como este (mais pagão do que cristão), o que pressupõe que ele fica com raiva e precisa ser apaziguado. Daí a proposta de duas outras maneiras possíveis de se entender hilastêrion. A primeira é traduzir a palavra como "propiciatório", referindo-se à tampa de ouro da arca da aliança que ficava no Santo dos Santos, no templo. É geralmente este o significado da palavra na Septuaginta, e é também o que ela significa na sua única outra ocorrência no Novo Testamento. [29] Já que, no Dia da Expiação, o sangue do sacrifício era salpicado sobre a tampa da arca, o chamado "propiciatório", sugere-se então que o próprio Jesus seria o "propiciatório" onde Deus e os pecadores são reconciliados. [30] Aqueles que sustentam este ponto de vista tendem a entender o verbo protithêmi (apresentou) como "expôs" (BJ) ou "dispôs publicamente" (BAGD), para indicar que, embora o propiciatório estivesse escondido dos olhos humanos pelo véu, "Deus expôs publicamente o Senhor Jesus Cristo, aos olhos do universo inteligente...", [31], como o caminho da salvação. Tanto Lutero quanto Calvino? acreditavam que "propiciatório" seria a tradução correta, e outros seguiram seu exemplo.

Mas os argumentos contrários parecem ser conclusivos. Em primeiro lugar, se com hilastêrion Paulo quisesse referir-se à tampa da arca ou "propiciatório", teria inevitavelmente usado com ela o artigo definido. E, depois, o conceito é incongruente em Romanos, pois esta carta, ao contrário de Hebreus, não se encontra na "esfera do simbolismo levítico". [32] Em terceiro lugar, a metáfora seria confusa e até mesmo contraditória, já que ela representaria Jesus com sendo concomitantemente a vítima cujo sangue foi derramado e aspergido, e o lugar onde se aplicaria este sangue. Em quarto lugar, o sentimento de dívida de Paulo para com o Cristo crucificado era tão profundo que ele dificilmente o teria comparado a uma "peça inanimada da mobília do templo".[33]

Uma segunda possibilidade de tradução para hilastêrion é "uma expiação", (RSV), o argumento para tal é que, enquanto que no grego secular o verbo hilaskomai significa "aplacar" (um deus ou um ser humano), na Septuaginta o objeto deste verbo não é Deus, mas o pecado. Portanto, o seu significado não seria "propiciar" Deus (isto é, torná-lo propício, desviar sua ira) mas sim "expiar" o pecado, isto é, anular o pecado ou acabar com a profanação. C. H. Dodd, a quem geralmente se associa esta posição e que, como editor e tradutor da Bíblia, evidentemente influenciou outros tradutores nesta direção, escreveu que os atos expiatórios "tinham como que o valor, digamos, de um desinfetante". [34] Assim, a versão da BLH diz que "Deus ofereceu Cristo como sacrifício para que, pela sua morte na cruz, Cristo se tornasse o meio de as pessoas receberem o perdão dos pecados".

A principal razão pela qual estas opções não são satisfatórias e pela qual é necessária uma referência a propiciação e o contexto. Nestes versículos Paulo descreve a solução de Deus para a condição humana; o problema não é só o pecado, mas também a ira de Deus sobre o pecado (1.18; 2.5; 3.5). E onde quer que exista a ira de Deus existe também a necessidade de impedir que ela se manifeste. Não deveríamos ter medo de usar a palavra "propiciação" em relação à cruz, tanto quanto deveríamos deixar de usar a palavra "ira" em relação a Deus. Em vez disto, deveríamos lutar para resgatar o uso desta linguagem mostrando que a doutrina cristã da propiciação é completamente diferente dos conceitos supersticiosos pagãos ou animistas. Tanto a necessidade como o autor e a natureza da propiciação cristã são bem diferentes.

Vamos primeiro à necessidade. Por que uma propiciação seria necessária? Resposta pagã é: porque os deuses são caprichosos, mal-humorados e sujeitos a acessos de ira. A resposta cristã é: porque a ira santa de Deus está voltada contra o mal. Quando se trata da ira de Deus, não tem esta história de falta de princípios, imprevisibilidade ou perda de controle; a única coisa que a provoca é o mal.

Agora vamos ao autor. Quem é o responsável pela propiciação? A resposta pagã é que somos nós. Nós ofendemos os deuses; portanto devemos agradá-los. Já a reposta cristã é que nós não podemos aplacar a justa indignação de Deus. Não há como fazê-lo por nossos próprios meios. Mas Deus, por amar-nos sem que o merecêssemos, fez por nós o que nunca poderíamos fazer sozinhos. João escreveu semelhantemente: "... Deus... nos amou e enviou o seu Filho como propiciação (hilasmos) por nossos pecados". [35] O amor, a idéia, o propósito, a iniciativa, a ação e a dádiva foram todos de Deus.

E, finalmente, a natureza. Como se conseguiu a propiciação? Em que reside o sacrifício da propiciação? A resposta pagã é que é preciso subornar os deuses com doses e oferendas, vegetais, animais e até sacrifícios humanos. O sistema sacrifical do Antigo Testamento era completamente diferente, já que todos sabiam que o próprio Deus havia "dado" os sacrifícios para o seu povo fazer a expiação. [36] E isso está inegavelmente claro na propiciação cristã, pois Deus deu seu próprio Filho para morrer em nosso lugar, e, ao dar seu Filho, deu-se ele mesmo por nós (5.8; 8.32).

Em suma, seria difícil exagerar no que diz respeito às diferenças entre a visão cristã e a pagã de propiciação. Na perspectiva pagã, os seres humanos tentam, através de suas ofertas desprezíveis, aplacar o mau humor de suas divindades enfurecidas. De acordo com a revelação cristã, o próprio amor incomparável de Deus aplacou a sua própria ira santa ao dar seu próprio Filho amado, que tomou o nosso lugar, assumiu os nossos pecados e morreu a nossa morte. Assim fazendo, Deus mesmo entregou a si mesmo para salvar-nos dele mesmo.

Este é o justo fundamento em que se baseia a justa justiça de Deus para justificar os injustos sem comprometer a sua justiça. Charles Cranfield expressou isso com cautela e eloqüência:

Deus, porque em sua misericórdia desejava perdoar os homens pecadores, e por ser verdadeiramente misericordioso, desejoso de perdoá-los – isto é, sem de maneira alguma desconsiderar o seu pecado – propôs-se voltar contra si mesmo, na pessoa do seu Filho, todo o peso daquela justa ira que eles mereciam. [37]
O professor Cranfield volta a este assunto no seu ensaio final sobre "A Morte e Ressurreição de Jesus Cristo". Conforme o seu argumento, o propósito de Deus ao fazer da morte de Jesus Cristo um sacrifício de propiciação foi para "que ele pudesse justificar os pecados justamente, isto é, de uma maneira tal que fosse inteiramente digna do seu caráter de Deus verdadeiramente amoroso e eterno". Pois, caso ele se limitasse a meramente perdoar os pecados deles, estaria com isso "comprometido com a mentira de que a maldade moral não importa e, dessa forma, estaria violando sua própria verdade e zombando dos homens, proporcionando-lhes uma certeza vazia e mentirosa que eles, na sua total humanidade, acabariam descobrindo ser uma miserável fraude". [38]
(iii) Demonstração

Até aqui nós vimos duas das palavras usadas por Paulo para descrever a cruz; são elas apolytrõsis ("redenção") e hilastêrion ("sacrifício de propiciação"). Vamos agora à terceira palavra, que é endeixis ("demonstração"). Afinal, a cruz foi uma demonstração ou revelação pública assim como uma conquista. Além de concretizar a propiciação de Deus e a redenção dos pecadores, ela também vindicou a justiça de Deus: Ele fez isso para demonstrar a sua justiça... (25b); ...isso para demonstrar sua justiça... (26a). Para podermos entender a forma que tomou esta demonstração da justiça de Deus, precisamos perceber o contraste deliberado que Paulo estabelece entre os pecados anteriormente cometidos, os quais em sua tolerância, havia deixado impunes (25b), e, o tempo presente, no qual Deus agiu a fim de ser justo e justificador (26a). É um contraste entre o passado e o presente, entre a tolerância divina que adiou o julgamento e a justiça divina que o exigia, entre "deixar impunes os pecados anteriores cometidos" (o que faria Deus parecer injusto) e a punição deles na cruz (pela qual Deus demonstrou a sua justiça).

Isto é, Deus deixou impunes os pecados de gerações passadas, permitindo que as nações seguissem seus próprios caminhos e não levando em consideração a sua ignorância [39], não porque houvesse qualquer injustiça de sua parte, ou por uma atitude de conivência com o mal, mas sim em virtude de sua paciência (BLH), e só porque tinha a firme intenção de, na plenitude dos tempos, dar a estes pecados o devido castigo por meio da morte do seu próprio Filho. Essa era a única maneira pela qual ele podia, ao mesmo tempo, ser justo, demonstrar a sua justiça e ser justificador daquele que tem fé em Jesus (26b). Tanto a justiça (o atributo divino) como a justificação (atividade divina) seriam impossíveis sem a cruz.

Aqui, portanto, estão os três termos técnicos que Paulo utiliza (apolytrõsis, hilastêrion e endeixis) para explicar o que Deus fez na cruz de Cristo e por meio dela: ele redimiu seu povo, aplacou a sua ira e demonstrou a sua justificação. De fato, estas três conquistas fazem parte de um todo. Através da morte expiatória e substitutiva do seu Filho, Deus aplacou a sua própria ira, de forma a redimir-nos e justificar-nos e, ao mesmo tempo, demonstrar sua justiça. Só nos resta maravilhar-nos diante da sabedoria, santidade, amor e misericórdia e Deus e prostrar-nos diante dele em humilde adoração. A cruz deveria ser o bastante para quebrantar o mais duro e derreter o mais insensível dos corações.

Agora, que vimos que a origem de nossa justificação é a graça de Deus e que ela se baseia na cruz de Cristo, vamos considerar o meio pelo qual somos justificados.

c. O meio de justificação: a fé.

Por três vezes neste parágrafo Paulo ressalta a necessidade da fé: mediante a fé em Jesus Cristo para os que crêem (22); mediante a fé pelo seu sangue (25) (ou, mais provavelmente, "pelo seu sangue a ser recebido pela fé"); e Deus é justificador daquele que tem fé em Jesus (26). De fato, a justificação é "pela fé somente", sola fide, um dos grandes slogans da Reforma. É verdade que no texto de Paulo a palavra somente não ocorre no versículo 28, onde Lutero o adicionou. Não é de todo surpreendente, portanto, o fato de a Igreja Católica Romana ter acusado Lutero de perverter os textos da Sagrada Escritura. Mas Lutero estava seguindo Orígenes, bem como outros Pais da Igreja, que haviam semelhantemente introduzido a palavra "somente". O que os levou a fazer isso foi um verdadeiro instinto. Longe de falsificar ou distorcer o que Paulo queria dizer; eles o estavam aclarando e enfatizando. O mesmo se passou com John Wesley, que escreveu que "confiava em Cristo, somente em Cristo, para a salvação". A justificação é somente pela fé, somente em Cristo, somente através da fé.

Além do mais, é de vital importância afirmar que nada existe de mérito na fé, e que quando dizemos que a salvação é "por fé, e não por obras", não estamos colocando um tipo de mérito ("fé") em lugar do outro ("obras"). Assim como a salvação não é nenhum empreendimento cooperativo entre Deus e nós, no qual ele entra com a cruz e nós contribuímos com a fé. Não, a graça não admite contribuições; e a fé é o contrário da auto-estima. O valor da fé não reside nela mesma, mas inteira e exclusivamente em seu objeto, a saber, Jesus Cristo, e este crucificado. Dizer que a "justificação é somente pela fé" é outra maneira de dizer que " justificação é somente por Cristo." A fé é o olho que o contempla, a mão que o recebe a sua dádiva gratuita, a boca que bebe da água vida. "A fé...abrange nada mais do que a jóia preciosa que é Jesus Cristo". [40] Como escreveu Richard Hooker, teólogo anglicano do século XVI: "Deus justifica o que crê - não por causa do valor de sua crença, mas por causa do valor daquele (sc. de Cristo) em quem ele creu". [41]

A justificação (cuja fonte é Deus e Sua graça, cuja base é Cristo e a cruz e cujo meio é somente a fé, completamente à parte das obras) constitui o cerne do evangelho e é uma característica singular do cristianismo. Nenhum outro sistema, ideologia ou religião proclama um perdão gratuito e uma nova vida para aqueles que nada fizeram para merecê-los, mas que, ao invés disso, muito fizeram para merecer o julgamento. Pelo contrário, todos os sistemas ensinam alguma forma de auto-salvação através das boas obras da religião, da piedade ou da filantropia. Já o cristianismo, em sua essência, nem mesmo é uma religião; é um evangelho, o evangelho, a boa nova de que a graça de Deus desviou a sua ira, que o Filho de Deus morreu a nossa morte e carregou a nossa condenação, que Deus tem misericórdia de quem não merece e que a nós nada mais resta a fazer ou mesmo contribuir. A única função da fé é receber o que a graça oferece.

A antítese entre graça e lei, misericórdia e mérito, fé e obras, salvação de Deus e salvação própria, é absoluta. Nós temos de escolher. Emil Brunner ilustrou vividamente essa antítese, em que, segundo ele, a diferença é entre "subir" e "descer": a questão decisiva" mesmo, ele escreveu, é "a direção do movimento". Os sistemas não-cristãos imaginam "o homem movendo-se" em direção a Deus. Lutero disse que meditar é "elevar-se à majestade nas alturas". De semelhante forma, o misticismo acredita que o espírito humano pode "flutuar nas alturas em direção a Deus". O mesmo se passa com o moralismo. E também com a filosofia. O "otimismo auto-confiante de todas as religiões não-cristãs" é muito parecido. Nenhum deles vê ou sente o abismo que se estende entre o santo Deus e os seres humanos, pecadores e cheios de culpa. Só quando vislumbramos isso é que percebemos a necessidade aquilo que o evangelho proclama, que é o "mover-se de Deus", a Sua livre iniciativa de graça, o Seu movimento "descendente", o Seu surpreendente "ato de condescendência". Parar na beira do abismo, atingir o ápice do desespero por jamais conseguir atravessar - esta é a indispensável "antecâmara da fé". [42]

NOTAS:

[1] 2 Co 6.2.
[2] Cranfield, vol. I, p. 199.
[3] Morris (1998), p. 173.
[4] Cf. Jo 12.43.
[5] Cf. 1 Co 11.7.
[6] Moule (1894), p. 97.
[7] Sandlay e Headlam, p. 36.
[8] Jeremias, p. 66.
[9] Marcus Loane, This Surpassing Excellence: Textual Studies in the Epitles to the Churches of Galatia and Philippi (Angus e Robertson, 1969), p. 94.
[10] Hodge, p. 82.
[11] Ver o Concílio de Trento, Sessão VI, e os seus decretos sobre o pecado original e a justificação.
[12] Calvino, 9. 8.
[13] Ibid, p. 121.
[14] Küng, p. 204.
[15] Ibid, p. 210.
[16] Ver o que escrevo a respeito de "justificação" no livro A Cruz de Cristo (Editora Vida, 1991).
[17] Barrett, pp. 75s.
[18] Heb 10.7.
[19] Moule (1894), p. 92.
[20] Deut 25.1.
[21] Pv 17.15.
[22] Is 5.23.
[23] Êx 23.7.
[24]P. ex. Lv 25.47ss.
[25]Êx 6.6
[26] Is 43.1.
[27] Mc 10.45.
[28] Moule (1894), p.92.
[29] Hb 9.5.
[30]Cf. Ex 25.22.
[31] Hodge, p.93.
[32] Godet, p.151.
[33] Cranfield, vol.I, p.215. Nygren usa uma expressão semelhante na p. 156.
[34] Dodd, p.54.
[35] 1 Jo 4.10.
[36] P. ex. Lv 17.11.
[37] Cranfield, vol. I, p. 217; cf. vol II, p. 828.
[38] Cranfield, vol. II, p. 827.
[39] At 14.16; 17.30.
[40] Lutero, Commentary on St Paul's Epistle to the Galatians (1531; James Clarke, 1953), p. 100.
[41] De "Definition of Justificantion" de Hooker, constituíndo o capítulo xxxiii de sua obra Ecclesiastical Polity (1593).
[42] Emil Brunner, The Mediator (1927; Westminster; 1947), pp. 291ss.



Fonte: STOTT, John. A Mensagem de Romanos. Trad. Silêda e Marcos D S Steuernagel. 1ed. São Paulo: ABU Ed., 2000. 528p.; pp. 122-135.